A Janela
contos 📖
Esse texto foi originalmente publicado no Tubmlr em 2019.
As silhuetas da noite marcaram uma narrativa estonteante nas paredes de madeira escura. O relâmpago se acendeu e o vento passou pelas frestas da janela, apagando as velas. Mas, ao contrário da beleza cerimonial, foi acompanhado por um rugido furioso da natureza. A luz também caminhou pelo chão riscado e marcado com histórias atemporais. Ela mergulhou no espaço por sobre os móveis, os livros e tudo o que havia ali, até que tocou a colcha engomada aos pés da cama e deslizou sorrateira até a cabeleira ondulada que ali descansava sob as camadas de mantas.
“Saath!” Algo clamava.
Um olhar amendoado despertou na escuridão. Seus olhos se esforçaram em vão, restando-lhe apenas poucos sentidos falhos.
Ruídos distantes lhe causaram arrepios. Outro relâmpago estourou, adicionando um novo personagem à narrativa.
“Saath!” Novamente ecoou, tímido, pelas paredes, junto ao estrondo do trovão.
Ela levantou-se lentamente, instigada pela curiosidade. Sentiu o peso da solidão do momento surrar suas expectativas, e, aos poucos, sua mente armava uma peça caprichosa de autossabotagem. Com os pés no chão, foi ágil até a cômoda e acendeu o candeeiro, sujando os dedos com um pouco da pólvora. Dos pés da cama, puxou o casaco que descansava e o levou sobre os ombros, desdenhando o frio que incomodava naquela época. Outro clarão rugiu.
“Respire!” Agora mais sedutora.
Saath agarrou uma das velas, sem se importar com o calor que escorria sobre sua pele. Tocou a maçaneta, e uma nota grave se acentuou ao silêncio, distorcendo-se rapidamente. Seu coração acelerou. Espiou pelo vão ao puxar a porta.
“Papai?”, chamou ela. Mais silêncio como resposta.
A claraboia permitia que o luar estivesse presente, mesmo que furtivo por entre as nuvens carregadas que já despejavam docemente a garoa sobre a casa. Saath caminhou até o parapeito e observou o corredor, sendo surpreendida por um vulto que rapidamente se ocultou nas sombras, descendo as escadas. Esfregou os olhos e, então, algo dançou logo abaixo. Ela se inclinou no parapeito para ver. Um véu dava as caras como se o vento permitisse que ele espiasse o andar de cima. Saath caminhou com passos lentos, excitada, sentindo até a textura do carpete sob seus pés. Desceu as escadas no mesmo ritmo, sem tirar os olhos do véu que fugiu pela porta, adentrando a sala. As sombras desenhavam formas, deslumbrantes ornamentos do montante. Seus passos a levaram até a porta e, frente à escuridão, sentiu-se transportada para outro lugar. Seus olhos correram ágeis para a retaguarda, dando de cara com a escadaria que havia deixado para trás. Voltou a atenção para a frente e, da escuridão completa que preenchia a sala, pequenos brilhos surgiram como vagalumes na noite, dando forma a uma face sem forma.
“Curiosa, Saath, curiosa”, uma voz harmônica e doce soou. A menina contraiu os músculos e suas pupilas dilataram, tentando dar forma ao que não compreendia. “Você ouve minha voz no silêncio, mas não vê meu rosto na noite.”
“O que é você?”, ela questionou, apreensiva.
“Eu sou a solidão. A tristeza, talvez. Você se sente triste?”
“Me sinto sozinha. Quando estou triste, meu pai tenta me animar.”
“Eu estou triste. Mas agora já não me sinto sozinha. Eu estou com você, e você está comigo.” Ela parecia exprimir um sorriso fluido. Saath a fitou, confusa. Em sua inocência, não gostaria de provocar o mal, então concordou.
No andar de cima, uma porta se abriu. O pai flagrou o quarto da menina escancarado. A chuva já batia forte contra as janelas, e sua voz chamou rouca e quase muda:
“Saath!”
Então ele flagrou o cintilar da vela no canto dos olhos, sentiu uma angústia familiar e apressou os passos sobre a escadaria. Parou boquiaberto e se desesperou como nunca. Com palavras a lhe faltar, apenas gritou:
“Não! Não!”
Saath flagrou seu pai se jogando em sua direção e, ao mesmo tempo, um calafrio carregando uma verdade cruel. A criatura se contorceu na escuridão e surgiu decrépita e horrorosa, se armando como em um abraço. Do corpo malformado e rugoso, braços se estenderam anormais, enrolando Saath em um aperto forte.
“Por favor!”, ele gritou outra vez. A criatura se contraiu e se desfez em uma nuvem densa. Saath desmaiou sufocada, enquanto seu pai era envolto por uma força que não poderia vencer.
“Não vou permitir, Olivia!”
“Eu prometi. Com sangue nos lábios.”
“Você não pode fazer isso!”
O pai sentiu a nuvem tomando forma em torno do seu corpo. Uma pressão insuportável sobre o peito lhe trazia uma dor insuportável, e logo ele não resistiu.
A luz do luar entrava sorrateira pela claraboia, criando ilusões distorcidas nas paredes de madeira escura e pelo chão riscado e marcado por histórias atemporais.
Saath acordou aos gritos. Sentia a mente exausta, e os olhos ardiam. À sua frente, seu pai a segurava e deslizava a mão sobre seus cachos em acalento.
“Ei. Está tudo bem, tudo bem”, disse ele.
“Papai! Eu tive um pesadelo!”, ela o abraçou forte. “Não quero mais ficar sozinha!”, completou docemente. O pai exibiu um sorriso de orelha a orelha, deslizou a mão sobre a face da menina, expressando um amor incontestável.
“Não se sinta sozinha, nunca mais, meu amor. Eu estou com você, e você está comigo.”